O Brasil e a ampliação dos direitos humanos: a busca por protagonismo em 2024

Ano VI, nº 94, 06 de fevereiro de 2025

 

Por Camila Alves Moraes da Silva, Laura Pugliesi Rivaben, Luiza Fernandes e Silva e Gilberto M. A. Rodrigues (Imagem: Tatiana Nahuz/MDHC)

Brasil e Direitos Humanos em 2024 

Ao longo de 2024, os direitos humanos enfrentaram grandes desafios em nível mundial em meio a um cenário complexo, que envolveu conflitos armados, crise climática, aumento das desigualdades e tensões geopolíticas. A Organização das Nações Unidas (ONU) destacou que, embora mais de 150 países tenham renovado seu compromisso com a Declaração Universal dos Direitos Humanos em seu 75º aniversário, as violações continuam prevalentes, especialmente em regiões afetadas por guerras e crises humanitárias. Ainda assim, há esperança em avanços através de mudanças na cooperação internacional.

O Brasil buscou se destacar em pautar a agenda humanitária durante o ano, com novidades. Por meio de fóruns como o G20 e a ONU, compartilhou experiências nacionais e apresentou prioridades, destacando a valorização da participação social. O país atuou ativamente na proposição de medidas que atendam demandas sociais e amplifiquem a voz das comunidades e da sociedade civil, promovendo maior alinhamento entre as necessidades da população e as iniciativas de organizações internacionais e governos. Assim, o Brasil, ao assumir a presidência do G20, com a convocação do G20 Social  elegeu seus temas prioritários dentro desta temática, sendo eles: 1) inclusão social e combate à pobreza e à fome; 2) transição energética e promoção do desenvolvimento sustentável em suas dimensões econômica, social e ambiental; e 3) reforma das instituições de governança global”.

Presidência Brasileira no G20

 

Na presidência do G20, o Brasil impulsionou o debate sobre direitos humanos. As presidências da Indonésia (2022) e da Índia (2023) já haviam intensificado a relevância desse debate no G20, especialmente diante da invasão russa à Ucrânia, que suscitou questionamentos sobre a capacidade do  grupo em lidar com crises globais, reforçando a necessidade de ações eficazes para preservar sua coesão e credibilidade. Durante a liderança brasileira, destacaram-se desafios internos ao país vistos como de  relevância internacional, como justiça e sustentabilidade, buscando construir consensos e construir ação eficaz quanto à urgência de temas centrais à agenda do país dentro G20.

 

G20 Social

 

Uma das novidades da gestão foi a criação do G20 Social para promover a participação social ativa no grupo. Para viabilizar seu funcionamento, foram estabelecidos 13 grupos de engajamento, cada um responsável por uma área específica de contribuição social: C20 (sociedade civil); T20 (think tanks); Y20 (juventude); W20 (mulheres); L20 (trabalho); U20 (cidades); B20 (business); S20 (ciências); Startup20 (startups); P20 (parlamentos); SAI20 (tribunais de contas); J20 (cortes supremas) e O20 (oceanos). Por exemplo, O OPEB participou do T20, grupo composto pela academia e outras instituições que fazem advocacy, desenvolvem pesquisas aplicadas à sociedade e produzem análises conjunturais fazendo recomendações que influenciam a opinião pública e a governança, contribuindo em pesquisas conduzidas durante a gestão brasileira. Movimentos sociais nacionais, redes e organizações sociais relevantes participaram da construção do G20 Social, reforçando o compromisso brasileiro com o diálogo entre diversas camadas sociais, dentre as quais a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), a Coalizão Negra por Direitos, a Marcha Mundial das Mulheres (MMM), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Rede Brasileira pela Integração dos Povos (REBRIP).

 

Essa iniciativa representa um marco na democratização do debate internacional. O G20 Social promoveu a inclusão de atores não governamentais, cujas demandas, inicialmente percebidas como locais, demonstram potencial para abordar desafios globais. Além da Cúpula do G20, anualmente realizada entre os/as chefes de Estado, foi realizada a Cúpula Social, com a possibilidade de incorporar contribuições avaliadas como pertinentes à Declaração de Líderes. Um dos debates mais importantes deste evento foi relativo à regulação do uso da Inteligência Artificial (IA) em larga escala com o objetivo de suspender tecnologias que de alguma forma contrariem os direitos humanos, seja por violação à privacidade, propagação de desinformação, ou aumento das desigualdades, dependendo de como as ferramentas são usadas. Esse apelo ganhou força e acabou incluído na Declaração de Líderes do G20, com o compromisso de maior cooperação entre os membros para discutir um uso mais responsável da IA nos próximos anos.

 

Aliança Global contra a Fome e a Pobreza

 

Outra iniciativa brasileira foi o lançamento da Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza, oficialmente no dia 18 de novembro de 2024, após um ano inteiro de planejamento do projeto e de apelos à adesão de líderes mundiais. Uma vez mais, evidencia-se a presença de experiências internas para a elaboração de um compromisso internacional, já que o combate à fome é uma prioridade para o governo brasileiro, como citado nos discursos de abertura da Assembleia Geral da ONU do presidente Lula tanto neste ano como no ano passado. A comunidade internacional reconhece a atuação e a expertise do Brasil nessa frente, por ter conseguido retirar o país do mapa da fome durante um período considerável por meio de políticas públicas, como o Programa Fome Zero e o Bolsa Família. A proposição da Aliança vem do entendimento de que a fome é também um problema sistêmico e multifacetado dentro do regime agroalimentar e de que os esforços internacionais existentes ainda são insuficientes para combater a fome e a pobreza.

 

A Aliança propõe reunir recursos e conhecimentos para a implementação de políticas públicas e tecnologias sociais comprovadamente eficazes na redução da fome e da pobreza no mundo, que teve um aumento significativo nos últimos 30 anos e precisa urgentemente ser erradicada. Com isso, a Aliança é ligada diretamente aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 1, 2 e 10, sendo eles respectivamente referentes à erradicação da pobreza, fome zero e redução das desigualdades. Além disso, essa agenda promove discussões em temas como combate às desigualdades, desenvolvimento e crise climática.

 

Além da erradicação da fome e da pobreza, busca-se tratar de questões associadas, como a financeirização dos alimentos, o avanço do agronegócio e a promoção da segurança alimentar. Entre os principais desafios para a Aliança estão as limitações financeiras e o longo processo de estabelecimento de um sistema alimentar inclusivo e benéfico para as minorias. Assim, para promover ações coletivas de combate à fome e à pobreza, deverão ser mobilizados recursos financeiros públicos e privados, além de conhecimento técnico, na implementação de programas e políticas em larga escala. Seu ponto focal é o apoio às políticas públicas nacionais, incentivando compartilhamentos entre os países de experiências e conhecimentos produzidos localmente. Suas propostas incluem políticas de proteção social, apoio a pequenos agricultores, programas integrados, nutrição e acesso a ativos produtivos. 

 

Lançamento do 18°ODS, agenda étnico racial como prioridade

 

A presidência brasileira também foi responsável por inaugurar no G20 a agenda étnico racial como uma prioridade nas discussões sobre economia global, inclusão social e desenvolvimento sustentável, incluindo a chamativa proposta de um 18° Objetivo para o Desenvolvimento Sustentável: Igualdade Étnico-Racial. Essa iniciativa coincide com os 80 anos da ONU (em 2025) e com o ano final da Década Internacional de Afrodescendentes (2015-2024) na qual apesar de alguns avanços, “o diagnóstico partilhado internacionalmente é que não houve avanços suficientes no que se refere às mudanças estruturais necessárias para possibilitar um real avanço humanitário na questão da igualdade racial” (Fiocruz, 2023). Dentro do tema desigualdade, o Grupo de Trabalho Desenvolvimento do G20 pretende tanto ressaltar a importância de se debater a questão racial, como fator relevante para superação dos desafios de desigualdade globais, quanto expor a experiência brasileira na promoção de políticas públicas de igualdade racial.

 

A agenda parte do entendimento de que categorias estigmatizantes como raça, gênero, classe, condição de deficiência e origem perpetuam desigualdades, resultando em exclusão social e econômica, o que também  reflete o sistema internacional, uma vez que  a desigualdade entre Estados é atravessada por questões raciais, evidenciando a necessidade de reformas institucionais. Nesse sentido, a proposição dessa agenda dentro do G20 é bastante provocativa, especialmente por se tratar de  um ambiente hostil às temáticas de gênero e raça. No entanto houveram críticas ao modo como  agenda foi apresentada -os principais debates e proposições aconteceram em “eventos paralelos” ao G20 Social, ou seja, não houve o devido destaque à agenda dentro da cúpula – e questionando a falta de representatividade e diversidade dentro dos órgãos de tomada de decisão do próprio G20.

 

Tais críticas podem ser estendidas a todo sistema internacional, inclusive para a Agenda 2023 para o Desenvolvimento Sustentável. Tendayi Achiume, Relatora Especial da ONU sobre as formas contemporâneas de racismo, xenofobia e formas correlatas de intolerância, fez contundente crítica à Agenda 2030.  No Relatório de 2022, afirmou que a agenda perpetua a discriminação racial, por tratar debilmente o tema e assim ser incapaz de alterar a lógica do desenvolvimento racialmente discriminatório que vigora atualmente e que está intrinsecamente vinculado com a ordem econômica internacional. Assim, justifica-se a criação desse novo ODS por iniciativa brasileira. 

A inauguração da agenda étnico racial dentro do G20 deve-se a um anúncio que a antecede. Ainda em 2023, o presidente Lula na Assembléia Geral da ONU apresentou o 18° Objetivo para o Desenvolvimento Sustentável: Igualdade Étnico Racial, reforçando a necessidade de construção de uma agenda própria para esse tema. O ODS 18, que integra a Agenda 2030, é de “adesão voluntária”. Trata-se de uma iniciativa conjunta de instituições como o BNDES, MIR, MPI, Ipea, Fiocruz, IBGE, MDHC e estará sob coordenação dos Ministério da Igualdade Racial, Ministério dos Povos Indígenas e da Secretaria Executiva da CNODS (Comissão Nacional dos ODSs), a CT-ODS 18 (Câmara de Trabalho ao ODS 18), esta última composta também por membros da sociedade civil para além das representações governamentais, reforçando aquela ideia de aumento da participação social em diversos âmbitos do governo. A iniciativa já conta com metas dez preliminares:  eliminar o racismo no ambiente de trabalho; eliminar todas as formas de violência; garantir acesso à justiça; garantir representatividade; proteção do patrimônio material e imaterial e das formas de vida;  assegurar habitação e moradia; garantir acesso à saúde;  oferecer educação de qualidade envolvendo diversidade linquística e educação antirracista; garantir autonomia e autodeterminação; e eliminar a xenofobia.

 

Apesar de digno de atenção,  o ato de inaugurar um 18° ODS não é novo. Por exemplo, a Índia,  criou um ODS 18 sobre o empoderamento local e o desenvolvimento rural;  e a Costa Rica, um ODS 18 sobre a felicidade e o bem-estar das pessoas (Fiocruz, 2023). Assim, o lançamento de um novo ODS serve para que o Brasil reforce seu compromisso com os direitos humanos, criando uma imagem de confiabilidade, além de servir como um palco para que o país possa exportar sua expertise em políticas públicas voltada às minorias étnicas e racializadas, além de poder aprender com experiências de outros países que se juntem às ações de cooperação. Isso não significa que a questão étnico racial dentro do país esteja solucionada, pelo contrário, o cenário está longe do ideal, e a iniciativa é uma forma de sinalizar compromisso, colocando-o em evidência com a proposição de um novo âmbito de governança global. Também coloca-o como capaz de pautar, dentro do Grupo das maiores economias do mundo, um tema provocativo e que é estruturante da ordem econômica e política mundial, o combate ao racismo e a discriminação, cujo avanço é fundamental para a reforma do sistema internacional por um mundo mais justo e sustentável.

 

Plano de Ações do Ministério das Relações Exteriores (MRE) para Ações Afirmativas

 

Em âmbito doméstico, o Brasil também tem buscado manter seu papel ativo em combater as desigualdades sociais e promover os Direitos Humanos através de políticas públicas, com protagonismo do Ministério da Igualdade Racial (MIR). De fato, a própria criação deste e outros ministérios – incluindo Gestão e Inovação em Serviços Públicos, Mulheres, Povos Indígenas, dos Direitos Humanos e Cidadania, Planejamento e Orçamento e Desenvolvimento Social – logo no primeiro dia de mandato do governo Lula III faz parte dessa sinalização para a importância dada às questões sociais.

Nesse sentido, ao longo de 2023, o MIR coordenou um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), com a participação seis ministérios e, no total, dezesseis órgãos do governo federal, que construiu o Programa Federal de Ações Afirmativas (PFAA). O Programa, lançado em novembro de 2023, propõe e fortalece políticas públicas de ações afirmativas no âmbito da administração pública federal direta, tendo em vista que as ações afirmativas são transversais e intersetoriais. Em janeiro de 2024, o MIR lançou o modelo do PFAA, especificando categorias beneficiárias, modalidades de ações afirmativas possíveis, bem como parâmetros iniciais para identificação das já existentes e metas e indicadores para o acompanhamento e avaliação das ações/programas/iniciativas apresentadas.

O Ministério das Relações Exteriores (MRE) foi o primeiro ministério a lançar seu Plano de Ação baseado no modelo e de acordo com o estabelecido no  Decreto Nº 11.785, de 20 de novembro de 2023, que institui o PFAA. O documento, lançado em cerimônia realizada em 04 de dezembro de 2024, é composto de 34 ações divididas em:

  • 18 ações de gestão para ampliar a diversidade no Itamaraty (incluindo seleção e desenvolvimento de carreiras, contratação de pessoal e programas de estágio, cotas e reservas de vagas, além de censos regulares) e contratação de serviços e produtos (incluindo acessibilidade física e informacional, diversificação do acervo artístico, histórico e de representação); e
  • 16 ações finalísticas do MRE para promover a participação de grupos prioritários na política externa, incluindo o serviço consular e de assistência a brasileiros no exterior, a transversalização da igualdade de gênero, a promoção da igualdade racial, a promoção comercial e cultural, e a inclusão de povos indígenas e de comunidades tradicionais nas negociações internacionais.

O Plano de Ação do MRE é resultado  de um processo de consulta interna, que contou com a contribuição da Associação e Sindicato dos Diplomatas Brasileiros (ADB), servidores e dos comitês que integram o Sistema de Promoção de Diversidade e Inclusão do ministério: étnico-racial, de gênero, de pessoas com deficiência e de pessoas LGBTQIA+. De acordo com o documento, o “Plano de Ação pretende ser ponto de inflexão a partir do qual a diversidade e a inclusão passem a integrar ritos internos, prioridades institucionais e compromisso institucionalizado”. Na sequência, afirma que “[e]m circunstâncias políticas desafiadoras e novas, no Brasil e no mundo, estimular mudanças internas é a mais promissora renovação do compromisso do Itamaraty com a excelência de seu quadro de funcionários e do exercício de suas funções”.

Estratégia de  projeção internacional através das “grandes propostas” em direitos humanos 

 

Considerando tudo que ocorreu ao longo do ano de 2024, especialmente no âmbito da presidência do G20, é notável o esforço brasileiro em se colocar como protagonista na Agenda dos ODS e na promoção dos Direitos Humanos através da inauguração de grandes projetos de cooperação internacional que exijam coordenação estreita para uma governança global que avance. Os temas propostos focam especialmente naqueles sobre os quais o Brasil já possui certo reconhecimento internacional e experiência, como clima e meio ambiente, nos quais o país reafirma seus compromissos internacionais e amplia metas; busca por justiça social pelo combate à fome, através da Aliança Global contra Fome; racismo, xenofobia e intolerâncias correlatas, pela proposição da agenda étnico racial no G20 que culminou no lançamento oficial do voluntário ODS 18 para Igualdade Racial. Todos esses objetivos caminham junto da proposta da política externa brasileira de reforma das instituições, apresentando os temas de modo a enfatizar as desigualdades e deficiências da atual ordem econômica e política mundiais em combatê-las. 

 

Do ponto de vista nacional, tem-se a intenção de recolocar o Brasil como um player global, afastando-se do isolacionismo do governo anterior, promovendo para si uma imagem positiva e de confiança internacional. Suas intenções são tanto políticas, de conquista de influência nas agendas específicas, como econômicas, para atração e recuperação de investimentos. Projeta-se, assim, como um país que é promotor dos direitos humanos e também da democracia, uma vez que a participação social tem ganhado espaço em diversos momentos de discussão e construção de políticas públicas nos últimos dois anos.

 

Quanto à perspectiva externa e futuras ambições, espera-se que a África do Sul, próximo país a assumir a presidência do G20 em 2025, continue com a missão iniciada pelo Brasil dentro do bloco de obter maior integração da pauta de direitos humanos promovendo ações como continuar com o G20 Social, apoiar a criação de projetos como a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza e reconhecer a importância de uma agenda étnico-racial no mundo atual. Quanto ao restante dos países, faz-se necessário um maior apoio a essas causas, visto as dificuldades enfrentadas atualmente com crises humanitárias e com um número crescente de outros desafios que dificultem a missão de garantir a todos uma boa qualidade de vida.

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